“...Eu andei por entre serpentes e espinhos naquele noite, como nas anteriores. Meu pé cortou-se em sangue. Seria um vermelho vivo a colorir de forma assustadora o solo negro, mas a escuridão impedia-me de ver o sangue jorrar; apenas podia senti-lo. Olhos fitavam-me como estrelas na noite escura. Guizos eriçavam-me os pelos. E os espinhos... esses, dilaceravam-me”.
***
— Você está bem? Consegue nos ouvir? – alguém dizia ao longe.
Tudo girava sem, contudo, sair do lugar.
— O que aconteceu? – ele perguntava. Mas não havia resposta.
O mundo parecia em silêncio ao seu redor. Entretanto, ele podia sentir o tumulto que se formara.
Mas os olhos... Os pares de olhos de serpentes o perseguiam... E ele não era capaz de fugir. Cruzava túneis incontáveis. Descia e subia degraus invisíveis de escadas sem fim.
A escuridão imperava. Ele podia enxergar. De forma inusitada, estava de olhos abertos, e justo agora, tudo que o envolvia era escuridão.
— O que significa tudo isso? Que lugar é esse? – ele dizia entre sussurros desesperados.
Fechou novamente os olhos, estava na sala de reuniões dos deficientes visuais, caído ao chão. As pessoas falavam com ele; ele respondia. Mas ninguém o escutava...
Abriu os olhos e viu-se novamente preso dentro daquele pesadelo sem fim.
Andou sob o peso da escuridão por horas incontáveis. O solo pedregoso e forrado de espinhos e serpentes acompanhou-o por boa parte da jornada. Até que ele parou para tomar fôlego e viu que, ao longe, as pedras transformavam-se em areia... Era um deserto que agora se projetava frente a seus olhos.
Ele correu. Reuniu forças que não sabia possuir, e chegou arrastando-se ao deserto. A suavidade daquele solo fez seus pés, feridos, estremecerem de satisfação. Revigorado, ele continuou a jornada e, após muito caminhar, contemplando apenas areia, um oásis surgiu em sua vista. Junto de um belo raio de sol.
Tudo se fez claridade.
A luz revestiu seu corpo e fez doer seus olhos que, diferentemente de quando ele estava acordado, contemplavam tudo pela mágica da visão.
Olhou para o lado e viu que não estava sozinho. Alguém caminhava junto dele.
Ele soube, então, o que tudo aquilo significava.
Aquela pessoa estivera com ele desde o início de sua jornada pela noite escura. Estivera ao seu lado por entre as cobras e os espinhos, compartilhando sua dor. Foi a presença, antes oculta pela escuridão, daquela pessoa, que lhe deu forças para continuar; para dar cada novo passo.
Ele havia alcançado o sol. E sua luz dera-lhe o privilégio de contemplar aquela moça... que estivera como um anjo a levá-lo adiante pelo caminho.
As mãos, que estiveram lado a lado na escuridão, entrelaçaram-se sob a luz do sol. Eles marcharam juntos em direção ao oásis. Mas, ao aproximarem-se, puderam perceber que não se tratava exatamente de um oásis. Eles puderam ver que era apenas uma rosa, sozinha, imperando sob os raios do sol.
Ele fechou os olhos, deixou de enxergar. Ouviu os murmúrios de seus colegas na reunião cada vez mais altos.
— Que susto – alguém falou – você estava descrevendo um pesadelo e, de repente, desmaiou.
— Eu não desmaiei – ele falou, reerguendo-se – eu apenas fui sugado com toda força para o pesadelo recorrente que tenho. Entretanto, pela primeira vez eu vi seu fim e pude compreendê-lo. O pesadelo tornou-se o sonho mais lindo... Nós nunca estamos sozinhos. Mãos invisíveis conduzem-nos por entre as serpentes e os espinhos.
Uma rosa havia surgido na noite escura e se fortalecido em meio as areias do deserto; podendo ser vista apenas sob a luz do sol, mas podendo ser sentida a cada novo pulsar de qualquer existência que estivera à sua procura.
Ele soube que, na verdade, a ausência de luz em sua visão não o tornava só. Ele sempre tivera alguém ao seu lado, mesmo que teimasse em não perceber.
No fundo, aquela rosa trouxera consigo uma lição: não há escuridão ou medo suficiente para afastar dois corações que batem como um só. Aquela rosa parecia anunciar ao vento do deserto, sob a luz do sol ou sob a escuridão da noite fria, que qualquer jardim regado a dois é mais florido.
Após acalmar todos os membros do grupo de deficientes visuais, a coordenadora Maria Isabel prosseguiu com a reunião...
**Continua...
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Os Contos de Libertação são publicados no Jornal O Popular, de Mogi Mirim, e no blog Reino Xadrez. O objetivo da série é seguir a filosofia de Exupéry: "O essencial é invisível aos olhos", trabalhar o interior dos personagens de forma reflexiva e adentrar no mundo dos sonhos! Boa leitura!
Fabiane
2 comentários:
Os Contos de Libertação tem a perspectiva do interior da cada um. Como já me parece característico na sua literatura, os contos retratam o íntimo das pessoas, aquilo que é invisível aos olhos comuns.
Parabéns por mais este conto e sonho! Um abraço.
Obrigada Paul!
é sempre muito bom receber a opinião de um amigo escritor!
Beijos e parabéns pelo seu trabalho tbm!!
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